quinta-feira, 30 de julho de 2015

Profissionais do sexo: da invisibilidade ao reconhecimento (artigo)

 Priscilla Gershon – Bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e Mestranda em Sociologia e Direito – PPGSD/UFF
 
1. A Prostituição feminina e suas representações sociais
 
Costuma ser freqüente, tanto no senso comum quanto no meio acadêmico, identificar a prostituição como “a profissão mais antiga do mundo”. No entanto, tratá-la como um objeto natural ou como um fenômeno historicamente invariável talvez não ajude a compreender as configurações que ela assume na modernidade e das quais não pode ser dissociada. É preciso partir da especificidade histórica que contextualiza essa prática para não diluir as suas características numa atemporalidade, em certa medida enganosa, em função da “armadilha do desejo de manter inalterados os vínculos com o passado longínquo idealizado” que, em última instância, serviria para referendar as próprias crenças e preconceitos enraizados a respeito da prostituição e da sexualidade a ela associada.

A historiadora Margareth Rago alerta para a implicação de uma abordagem desse tipo, que pode, na pior das hipóteses, descaracterizar aquilo que pesa tanto na postura preconceituosa em relação ao comércio sexual quanto no seu sentido inverso de normalizar e moralizar suas práticas, através, sobretudo, do reconhecimento legal da profissão. Conforme sustenta a autora, é preciso entender a prostituição como um conceito “construído no século XIX, a partir de uma referência médico-policial” e que, portanto, “não pode ser projetado retroativamente para nomear práticas de comercialização sexual feminina em outras formações sociais, sem realizar um aplainamento violento da singularidade dos acontecimentos.”

Fenômeno essencialmente urbano, a prostituição feminina inscreve-se numa economia específica do desejo, característica de uma sociedade na qual predominam as relações de troca e todo um sistema de codificações morais que valoriza a união sexual monogâmica, a família nuclear, a virgindade e fidelidade femininas e o papel reprodutivo da mulher, destinando, por conseguinte, um lugar específico, saturado de conotações moralistas e significados pejorativos, àquelas “sexualidades insubmissas”, sempre associadas à dimensão rejeitável da moral dominante da época e que, portanto, devem ser expurgadas da sociedade e reprimidas pelas autoridades estatais.

A perspectiva adotada pela historiadora permite mobilizar, nesse contexto, as reflexões formuladas há um século atrás por Simmel, mas que não perdem a atualidade nem o valor analítico de sua enunciação. Como Simmel sustenta nas suas “Algumas reflexões sobre a prostituição no presente e no futuro” uma análise antropológica poderia demonstrar que, ao contrário da desvalorização ocidental que constrói uma leitura da prostituição como imoralidade a ser reprimida, a prostituição assume um valor cultural em muitas sociedades ditas primitivas. Simmel aponta que num estado antigo da sexualidade ainda não regulamentada, ou em algumas partes da África, cada mulher pertence à etnia em sua globalidade e, portanto, entregar-se a vários homens faz parte de um costume e de uma conduta altamente elevada na ordem moral.

Dessa forma, só se torna possível valorar negativamente a prostituição quando a economia monetária é estabelecida de forma permanente. Nas suas próprias palavras, “assim que o dinheiro se torna a medida de todas as outras coisas, ele mostra uma ausência de cor e de qualidade que, em certo sentido, desvaloriza tudo aquilo de que é equivalente”. A troca de um bem tão íntimo e humano, por meio de algo tão impessoal como o dinheiro, “(...) fornece uma das causas essenciais da arrogância dos capitalistas, do abismo vertiginoso que se abre entre a posse e a oferta” e assim, 
 
“Cada vez que um homem compra uma mulher por dinheiro, vai-se um pouco do respeito devido à essência humana; e nas classes ricas, onde tal prática é cotidiana, é esse fato, sem dúvida, uma poderosa alavanca da presunção que a posse do dinheiro gera, dessa mortal ilusão a respeito de si que leva a pensar que tal haver confere à personalidade como tal um preço qualquer, ou um sentido interior. Essa total deformação de valores, que cava um abismo cada vez mais intransponível entre o possuidor e a pessoa obrigada a deixar-se comprar, é a sífilis moral que decorre da prostituição (...)” 

A partir das reflexões de Simmel, a indignação moral da “boa sociedade” com prostituição deve ser vista como uma hipocrisia social que, ao mesmo tempo em que impele alguns grupos a se sacrificarem “na e pela sociedade”, relega-os ao invisível ou ao fardo da exclusão social, cuja única visibilidade gira em torno da imoralidade a eles atribuída e, por conseqüência, da marginalidade ou da criminalidade que a lei a serviço da sociedade burguesa não hesita em construir como reflexo de seus valores, e que é, antes de tudo, uma verdadeira “deformação ética”.

Assim, a “boa sociedade” louva, ainda que de forma camuflada, a necessidade social da prostituição, concebendo-a como um “mal necessário” que atende a satisfação sexual das “pulsões pré-nupciais” do gênero masculino enquanto preserva a sexualidade intocável das futuras esposas, mas, por outro lado, rebaixa o comércio sexual e, sobretudo, aquelas “vítimas das pulsões alheias”, que nele figuram como “mercadorias”, a uma imoralidade suja que supostamente corrompe o seu falso ideal de pureza.

Enquanto houver casamento monogâmico com obrigação de fidelidade, haverá prostituição. “É só com o amor plenamente livre, quando caducar a oposição entre legitimidade e ilegitimidade, que não se precisará mais de pessoas especiais dedicadas à satisfação sexual do gênero masculino” ou, em outras palavras, das “impulsões poligâmicas que se encontram na natureza masculina” e não quando não houver mais miséria, “porque as necessidades sociais suficientemente fortes criam quem delas se encarregue, a todo e a qualquer preço". 
 
Apesar da ênfase de Simmel nos impulsos sexuais masculinos, é necessário não perder de vista que tais práticas e desejos estão igualmente presentes no universo sexual feminino, assim como os conceitos de gênero são construções sociais de uma “natureza” que não é exclusivamente masculina ou feminina, tampouco essencialista, mas simplesmente humana.

É inegável a persistência dos valores negativos e pejorativos, que acompanham como sombra tal ocupação tão antiga na história da civilização e que, como afirma Simmel, só não serão mais projetados quando for possível vencer, de fato, a opressão da mulher e garantir, efetivamente, a igualdade de condições para ambos os sexos.

Dessa forma, na visão de Simmel, a posição da prostituição deve ser elevada por intermédio de uma ampla reforma. Deve-se elevar a posição social desse gênero de mulheres, duplamente vitimizadas pela insaciedade dos desejos sexuais masculinos, de um lado, e pela sua identificação com “sujeitos de um erro individual”, de outro. As prostitutas devem ser percebidas, ao contrário, como “objetos de um erro social”. Aqui, também, é importante esclarecer que a idéia de “erro social” pode ser entendida não como algo socialmente ruim ou incorreto, até porque as idéias do que é bom e do é mau também são construções sociais, mas como algo cuja valoração e tratamento não condizem com as posturas e com as práticas sociais.

2. Políticas de contenção do desejo: Um capítulo da história da criminalização da marginalidade
 
Jean-Claude Schmitt faz uma distinção conceitual entre os diferentes níveis incluídos na noção de marginalidade enquanto construção social. A marginalidade implica um estatuto mais ou menos formal no seio da sociedade e traduz uma situação que, pelo menos teoricamente, pode ser transitória. Aquém da marginalidade, a noção de (re)integração indica a ausência ou a perda de um estatuto marginal. Além, a noção de exclusão social, que assinala uma ruptura, às vezes ritualizada, em relação ao corpo social. O deslocamento de uma condição à outra implica em “ritos de passagem” codificados em três etapas sucessivas, compreendendo a separação, a margem e a integração, pelas quais se pode avançar ou recuar ao sabor da extensão variável e histórica das culturas. Existe, portanto, em todas as épocas, uma linha divisória que decide seja a integração, seja a exclusão dos marginais, demarcando a fronteira que separa os “estabelecidos” dos “outsiders”, para usar a terminologia de Norbert Elias.

Na interessante viagem pela qual nos conduz o autor, passamos pelo renascimento das cidades na Europa Ocidental, do século XI ao século XIII, quando os novos grupos sociais que desenvolvem ofícios urbanos estão à margem do cenário rural e privilegiado da vida social, a um momento posterior da grande integração pelo trabalho que, embora “recupere” todo um conjunto de categorias sociais urbanas, vai justificar mais tarde, a marginalização ou mesmo a exclusão de outras categorias julgadas inúteis a partir do critério de utilidade social, chegando ao século XIII a uma verdadeira onda de exclusão que rejeitava, entre outros grupos, os leprosos, os heréticos e os judeus.

A época moderna, desde o fim do século XV até o início do século XVII se instala com uma leitura institucional do marginal. Mais do que expulsar os mendigos e loucos, o que não bastava para exorcizar o medo do crime e o desejo de higiene social, o isolamento se realiza pelo internamento em hospitais-prisões, nos quais a coerção ocupava o lugar do tratamento médico. Por outro lado, as forças de integração, como a família, as “abadias de juventude” e outras estruturas de integração mais institucionais conscientemente elaboradas pelas autoridades, atuam e se desenvolvem paralelamente aos fatores de exclusão. Os marginais, então, são justamente os que escapam a todas essas estruturas de integração numerosas e complementares. No entanto, Schmitt retraça essa trajetória história para colocar o pertinente questionamento: “Acaso isso significa que não
possuem em seu ‘meio’, regras sociais próprias? Ou inversamente, deve-se pensar que formam uma ‘contra-sociedade?’”. 
 
Aterrissamos na época contemporânea e o historiador encerra a nossa viagem colocando um novo ponto de partida. Será que a marginalidade e a exclusão não são produtos de uma “arqueologia do nosso Saber”, dos valores e das recusas de nossa própria sociedade? E não poderia ser fruto da ausência de uma consciência ética? Em relação à prostituição, não faltaria uma conscientização moral de um trabalho dignamente realizado e que deveria ser integrado na sociedade pelos mesmos direitos trabalhistas que qualquer trabalho, legalmente reconhecido, tem assegurado contra a exploração do capital? Porque foi com a consolidação da ordem burguesa e a instituição do capitalismo, quando o mediador de todas as relações sociais passa a ser simbolizado pelo dinheiro, que novas características são imputadas à prostituição. E é nesse mesmo período que o Estado começa a se interessar pela prostituição urbana abdicando de uma postura de tolerância em favor de uma prática regulamentarista. [grifo nosso]
O crescente interesse pela prostituição entre médicos, juristas, criminologistas, desde meados do século XIX, esteve estreitamente ligado à preocupação com a moralidade pública e, mais especificamente, com a definição dos códigos de conduta da mulher, num momento de intenso crescimento urbano industrial. Essa preocupação, conforme relata a historiadora Margareth Rago, esteve muito mais centrada na construção de um “fantasma”, que aterrorizava a idéia masculinamente construída da condição feminina, do que sobre o espaço geográfico da zona do meretrício ou sobre as prostitutas empiricamente consideradas.

Essas representações construídas pelo imaginário social eram incorporadas pela própria produção científica relativa ao tema, que reproduzia a polarização das imagens associadas à prostituta, de um lado, como vítima, com uma explicação essencialmente econômica da comercialização sexual do corpo feminino e, de outro, como mulher rebelde, a partir de uma leitura psicologizante que interpreta a prostituição como um caso patológico de sexualidade desviante. Em ambas representações, a imagem romantizada da meretriz é construída a partir de uma perspectiva normativa.

Em todo o mundo ocidental muito se discutiu sobre qual seria a melhor postura a ser assumida pelo Estado, travando-se um longo debate entre abolicionismo e regulamentarismo. A influência deste último, que advogava por um controle social associado ao discurso sanitarista, no entanto, ultrapassou o âmbito das políticas públicas, construindo um conceito da prostituição como doença e, como falas científicas, apresentando a própria definição da “verdade” sobre o sexo.

Em todo o mundo burguês, os poderes da polícia sobre a prostituição proporcionavam situações de autoritarismo e controle social associados ao discurso sanitarista, revelando-se inteiramente arbitrário por atingir apenas uma parcela muito pequena das prostitutas, evidentemente as “prostitutas públicas”, mulheres de condições sociais inferiores, deixando de lado as meretrizes clandestinas e as prostitutas de luxo que, em geral, contavam sempre com a proteção dos homens poderosos e politicamente influentes. Como não podia deixar de ser, a política regulamentarista revelou-se ineficaz e violenta, “produto de uma vontade panótica de domesticação da sexualidade feminina” que transgredia os padrões considerados de normalidade.

O evolucionismo e o positivismo do século XIX formularam a teoria da diferença biológica dos sexos para justificar as desigualdades culturais entre homens e mulheres. Essas teorias construíam argumentos misóginos que apontavam para a inferioridade biológica, e também intelectual, do “sexo frágil”, sugerindo a existência ameaçadora de uma prostituta em potencial em cada mulher. Dessa forma, à mulher não cabia nada mais do que seu papel natural de procriação e quanto à sua sexualidade, destinada ao casamento monogâmico, não cabia qualquer direito de escolha, só lhe restando a obrigação da reprodução e a manutenção da família.

Seguindo essa linha de desse pensamento, a prostituição era considerada um comportamento desviante, patológico, mas tolerado enquanto um "mal necessário" para a preservação da moral no lar na medida em que preservava a virgindade das futuras esposas satisfazendo os ansiosos desejos sexuais masculinos, não sendo, por isso, considerada legalmente como crime. Entretanto, ela foi criminalizada como "ato imoral" que ameaçava a vida social considerada boa, sofrendo todos os efeitos perversos da sua estigmatização.

Defendia-se ainda uma repressão policial direta à prostituição, principalmente quanto aos seus "abusos" e comportamentos considerados “escandalosos”. A base da polícia de costumes se ergueu sobre uma política de guetização que, confinando as prostitutas em casas de tolerância [link para filme sobre assunto] devidamente licenciadas, tornava mais fácil a fiscalização ao mesmo tempo em que afastava dos olhos da “boa sociedade” as imoralidades que encenavam e que feriam a honra e a dignidade da mesma.

O abolicionismo surge associado ao movimento feminista que passou a denunciar os abusos cometidos pelas autoridades policiais no tratamento de operárias grevistas como prostitutas, obrigando-as ao controle sanitário e a exames médicos periódicos. Os abolicionistas questionavam, sobretudo, a interferência estatal na esfera da intimidade privada que só produzia como resultado a exposição ultrajante da mulher a devassamentos médicos obrigatórios, por meio de uma rígida fiscalização sanitária, e confinavam as meretrizes, mantendo-as aprisionadas em bordéis ou hospitais quando doentes.

Considerando a injustiça de penalizar apenas as prostitutas em um “contrato” que tinha, essencialmente, a bilateralidade como característica, ou seja, o “programa” só se realiza se houver quem pague por ele, o jurista Evaristo de Moraes se posicionava radicalmente contra as atuações das autoridades policiais, reivindicando uma restrição do poder policial em benefício da atuação dos médicos sanitaristas. Por sua vez, mesmo criticando uma espécie de legalização oficial da “imoralidade”, os médicos se opunham a uma postura desinteressada do Estado e pregavam a moralização dos costumes e a contenção dos desejos por meio de rígidas políticas higienistas. Por meio de conferências, palestras, exibição de monstruosos modelos de cera das doenças venéreas, entre inúmeros outros recursos, procuravam alertar a população sobre a sífilis e os males causados pela prostituição, acreditando serem os portadores da educação e evolução morais do povo.

Dessa forma, ainda que as propostas abolicionistas tenham informado práticas mais liberais, preservaram inúmeros pontos de contato com o regulamentarismo, de forma que as fronteiras que diferenciavam suas ações eram permanentemente móveis e extremamente tênues. O peso que lançam sobre a prostituta como principal responsável pela existência da prostituição e das doenças venéreas é, de fato, uma técnica disciplinar comum a ambos. Por isso mesmo, a crítica de médicos e juristas ao sistema regulamentarista não implicava, na prática, num distanciamento do Estado em relação ao mundo da prostituição, conduzindo, ao contrário, a um avanço da repressão sobre as meretrizes de condições sociais inferiores. O controle rígido da sexualidade em nome da preservação da saúde da família burguesa e, por conseqüência, da garantia dos padrões de eficiência na produção capitalista, acabou por transformar a medicina num opressor poder de polícia.

Dessa forma, o movimento ocidental das idéias de controle sobre a prostituição não chegou a normatizá-la, nem a extingui-la, nem a assisti-la. Provavelmente porque, no fundo, todas as propostas se baseavam na visão moralista e conservadora da prostituta enquanto ameaça à família mononuclear e à sociedade burguesa e que simbolizava, numa ou noutra perspectiva, a antítese da ordem dominante e o reverso da imagem idealizada da mulher/esposa/mãe.

Diversas foram as formas de controle das sexualidades que transgrediam os códigos morais dominantes, em relação aos quais todo desvio era considerado perversão, doença ou delito. Interessava às ciências da época, sobretudo à psiquiatria, à medicina e à criminologia, construir “verdades” científicas sobre esses fenômenos marginais exatamente para mantê-los à margem e melhor conservar a integridade e a saúde dos indivíduos socialmente estabelecidos e considerados normais. A criminalização da sexualidade desviante, que recaía apenas sobre as classes sociais inferiores, tinha como verdadeiro objetivo a manutenção desses grupos sociais sob permanente suspeita e rígido controle, procedimentos que se deslocavam para tantas outras práticas sociais e para muitos outros segmentos da sociedade. 
 
3. A batalha por reconhecimento e por uma história nova: Cruzando as margens e (re)construindo imagens
 
Como nos lembra Schmitt, é impossível compreender a totalidade da realidade social simplesmente pelo olhar a partir do centro, motivo pelo qual a história tradicional encontra-se limitada por sua própria posição. É preciso cruzar múltiplos pontos de vista e incluir a perspectiva das margens na tentativa de construir um verdadeiro projeto de emancipação.

Nas últimas décadas, as profissionais do sexo organizadas engajaram-se na ousada luta pela reconstrução das imagens a elas atribuídas que, por séculos, estiveram associadas a significados negativos e a uma conotação desmoralizante da sexualidade que vivenciam aos olhos do que é considerado “normalidade” pela “boa sociedade”. Não é fácil, no entanto, romper preconceitos e representações sociais culturalmente (arbitrariamente) construídos e naturalizados nos esquemas inconscientes de percepção e classificação simbólica do mundo que, subjetivamente, organizam e modelam as relações de dominação objetivas.

Embora ainda haja um longo caminho a percorrer nessa “batalha” por visibilidade (positiva), onde a transformação objetiva da sociedade envolve uma luta cognitiva pela mudança do próprio sentido das práticas sociais às quais se referem, um significativo passo já foi dado pelas prostitutas com as lutas que mobilizam na reivindicação do reconhecimento legal da profissão e pela dignidade do trabalho realizado pela categoria.

Nos anos setenta e oitenta, as profissionais do sexo de diversos países iniciaram o processo de organização da classe em função de diferentes necessidades locais, mas com uma reivindicação comum, qual seja, a defesa dos direitos humanos/civis das profissionais do sexo.

No Brasil, a mobilização política da categoria tem como referência inicial a luta contra a violência policial e sua primeira manifestação pública acontece em 1979, em uma área de prostituição de São Paulo que convivia constantemente com a violência das atuações policiais. Nos anos seguintes, surgiram fóruns de discussão, incentivados pela ação direta das lideranças de classe, que começavam a conquistar maior representatividade no cenário nacional.

Resultante desse esforço inicial em torno da mobilização da classe, foi realizado em julho de 1987, no Rio de janeiro, o primeiro Encontro Nacional de Prostitutas, reunindo representantes de oito capitais brasileiras. Os eixos temáticos do Encontro foram a criação de associações da classe que efetivamente representassem as profissionais do sexo e a definição de estratégias conjuntas de maior eficiência para combater a violência policial.

Como conseqüência das discussões, o principal compromisso assumido no fórum foi o de iniciar a legalização de associações em diferentes estados, de forma a garantir não só o reconhecimento público da profissão, mas também a cidadania das profissionais do sexo. Em relação a essa questão, não é desnecessário lembrar que no Brasil vigora um modelo de “cidadania regulada” calcada no hibridismo do laissez-faire econômico com a intervenção estatal e a regulamentação das profissões pelo direito do trabalho.

Durante esse primeiro encontro nacional foi também criada a Rede Brasileira de Prostitutas e que, posteriormente, teve seu nome alterado para Rede Brasileira de Profissionais do sexo (RNPS). O principais objetivos que orientam as ações da Rede envolvem a articulação política do movimento organizado de prostitutas, o fortalecimento da identidade profissional da categoria, visando o pleno exercício da cidadania, a redução do estigma e da discriminação e da melhoria da qualidade de vida da sociedade.

Nos encontros posteriores, o movimento ampliou a sua agenda política, incorporando outros temas como a legalização da profissão, a promoção da saúde da mulher e a prevenção da epidemia da AIDS. Em relação a esse último desafio, as mobilizações sociais, não só das profissionais do sexo, mas também dos homossexuais que igualmente tiveram seus estigmas reforçados ao sofrerem a culpabilização pela existência e disseminação do vírus do HIV, são fortalecidas quando ocorre o retratamento histórico frente aos dois grupos específicos, desfazendo a idéia de "grupos de risco" e introduzindo o conceito de "comportamentos de risco".

Nesses anos de existência da RNPS, algumas conquistas merecem ser destacadas: A inclusão da categoria “profissionais do sexo” na Classificação Brasileira de Ocupações, do Ministério do Trabalho e Emprego; a apresentação ao Congresso Nacional de Projeto de Lei que reconhece a prostituição como atividade profissional; a realização da primeira pesquisa nacional sobre qualidade de vida das profissionais do sexo, realizada pela UNB e pelo Programa Nacional de DST/AIDS; a realização da campanha nacional “Sem vergonha, garota. Você tem profissão”, executada pelo Programa Nacional de DST.

Muitas das associações de profissionais do sexo que passaram a existir em função do respaldo político garantido pela RNPS, conseguiram ultrapassar os objetivos da população fim, estendendo sua atuação para os diferentes segmentos indiretamente vinculados ao universo de seus propósitos. Essas associações passaram a desenvolver trabalhos comunitários envolvendo clientes, comerciantes, escolas e demais representatividades sociais existentes nas áreas onde atuam. Dessa forma, foram gradativamente conquistando espaço e credibilidade junto à população. E quando se tornam referência municipal e/ou estadual de trabalho comunitário, o preconceito sucumbe frente aos benefícios de um trabalho organizado a serviço de uma coletividade.

Além dessa atuação externa, as associações de profissionais do sexo também possibilitam às filiadas uma perspectiva diferenciada de vida, uma vez que facilitam as possibilidades de renda alternativa, propiciando cursos específicos para a inserção das profissionais do sexo no mercado de trabalho paralelo ao que atuam.

No último Fórum Social Mundial, realizado na Venezuela, em Caracas, em Janeiro de 2006, a organização não-governamental Davida mobilizou ativistas de vários países em torno das acaloradas discussões sobre prostituição, sexualidade e movimentos sociais. Entre outros temas, foram abordadas questões relacionadas ao corpo e à fantasia, à legislação, ao controle sanitário, e ao debate que opõe opção e necessidade.

Em relação a uma questão levantada sobre “venda do corpo”, Lucia Paz, prostituta militante do NEP de Porto Alegre e da Rede Brasileira, além de socióloga, esclareceu: "Nosso trabalho é negociar fantasias, e não vender o corpo, como dizem por aí. Se fizéssemos isso, nossa cabeça andaria solta pelas ruas". A resposta espirituosa da ativista demonstra que, diferentemente da noção do corpo, e da própria prostituta, como mercadoria, é possível pensar numa troca de fantasia, na qual a função da profissional do sexo é representar para o cliente o teatro que lhe é encomendado.

Temas internacionais foram abordados pela socióloga alemã e cooperante da ONG Davida, Friederike Strack. Em sua fala, ela afirma que o principal problema para as prostitutas são as leis de migração, que dificultam a atividade profissional no continente europeu, impedindo o livre trânsito de pessoas para o trabalho. Em relação ao tráfico de pessoas, denunciou a associação freqüente deste tema com a migração, numa tentativa de vitimização da trabalhadora sexual, e defendeu a legalização e o livre trânsito justamente como forma de enfrentar a exploração e o tráfico: "Como a maioria das migrantes trabalha ilegalmente, sem documentos, não pode ir a policia denunciar a exploração porque será deportada para seu país".

Em relação ao controle sanitário, Lucia afirmou:
 
"Somos contra qualquer controle de saúde das prostitutas. Trabalhamos para que a mulher seja responsável pela sua saúde, buscando os serviços disponíveis. O que fazemos é incentivar isso, atuando em projetos de saúde integral e prevenção de AIDS com as colegas, incluindo distribuição de preservativos. Isso é desenvolvido por nossas associações e ONGs, em parceria com os governos federal, estaduais e municipais".

Em relação ao recorrente debate que opõe opção e necessidade, reforçou a liberdade das profissionais em oposição à tendência de vitimização das prostitutas. "No Brasil, nós prostitutas acreditamos que todos os cidadãos, homens e mulheres, têm o direito de escolher no que querem trabalhar, e isso não é diferente com as prostitutas. Muitas vêm com o discurso de vítima da sociedade e não é assim. Há mulheres que dizem: Vou batalhar um mês para arrumar os dentes, comprar um fogão, uma cama. E depois de cinco anos elas estão lá. Isso quer dizer que é uma opção, e pelo estigma e pela discriminação que sofremos, tentamos encobrir, esconder nossa profissão e assim enganamos a nós mesmas."

E acrescentou:

"Toda mulher que quiser outra profissão, outro trabalho, pode e deve procurá-lo. E se pode estudar sim na profissão. Eu estudei na prostituição, paguei meus estudos na universidade como socióloga, por cinco anos, trabalhando e criando meus filhos como qualquer pessoa. Porque muitas mulheres entram com o discurso de necessidade e ficam por opção".

Essas últimas falas da ativista nos permitem pensar que, de fato, a docilidade dos corpos e a resignação dos discursos não cabem diante da revolução individual de cada sujeito e da construção de suas singularidades. Nesse sentido, a prostituição dissocia-se, para além das perspectivas da patologia, do desvio ou do "mal necessário" à sociedade familiar burguesa, da própria perspectiva de necessidade econômica e, portanto, de uma suposta ausência de escolha. Ainda que não desconsiderem totalmente a necessidade econômica como fator de motivação para ingresso no universo prostitucional, os movimentos organizados das profissionais do sexo enfatizam a dimensão da opção individual que se traduz na escolha por uma sexualidade livre onde o desejo feminino não esteja mais aprisionado aos ideais do amor fiel e ao papel reprodutor construído pela
dominação masculina. Da mesma forma, e em oposição às conotações negativas historicamente atribuídas, permitem evidenciar a positividade do objeto que aponta para a função agregativa da prostituição, da qual fala Maffesoli, como lugar onde se refazem as sociabilidades subterrâneas fundamentais.

Segundo o fenomenalista francês, as manifestações dionisíacas do prazer e do lúdico das “sociabilidades de base” não podem ser impedidas sem que se produza o risco de explosão de formas violentas e perversas dessa dimensão da vida humana recalcada. Daí a necessidade de integrar as “regiões sombrias” que sempre se desejou purgar de uma suposta “natureza humana”, supostamente também luminosa. Além dessa dimensão, o mundo do prazer propicia a fusão do individual no coletivo, uma diluição do eu na confusão dos corpos e proporciona uma linha de fuga da constelação familiar, da disciplina do trabalho, dos códigos normativos convencionais. Nos territórios do prazer, vivem-se possibilidades de perda da identidade na relação sexual, de desterritorialização subjetiva, ao inverterem-se os papéis e dramatizarem-se as situações, abrindo-se espaço à manifestação de ‘pulsões irreprimíveis’ que não podem se realizar na esfera conjugal normalizada.

Considerando essas duas perspectivas, da singularidade e da positividade da prostituição, é possível perceber a sua organização e mobilização como um luta política mais ampla em busca de uma resignificação simbólica, cujo objetivo maior é a transformação da própria sociedade.

É assim que as lutas em torno de significados e representações das práticas sociais acionam uma “política cultural” com a finalidade de deslocar a prostituição de um lado para o outro da classificação social, ou seja, da exclusão social, construída pelos códigos impuros que definem uma identidade merecedora de repressão, para a integração social que reconhece e legitima a sua valorização. Portanto, mais do que uma transformação de ordem econômico-material, o que está em jogo é uma transformação mais ampla que redimensiona a ordem cultural. Via de mão dupla, a política é uma luta discursiva que se configura numa disputa por significados e “a cultura é política porque os significados são constitutivos dos processos que implícita ou explicitamente, buscam redefinir o poder social”.

É nesse sentido que significados e práticas teorizados como marginais, oposicionais, minoritários, residuais, emergentes, alternativos, dissidentes, sempre em relação à ordem cultural dominante, podem ser fonte de processos que devem ser aceitos como políticos.

Quando os movimentos organizados das profissionais do sexo desestabilizam os significados culturais dominantes, apresentando concepções alternativas de mulher ou da sexualidade feminina, estão colocando em ação uma política cultural, de vital importância para todos os movimentos sociais emergentes, sobretudo os latino-americanos, que buscam visibilidade e reconhecimento para as concepções e ações que se filtram de seus discursos dominantes.

Esse processo de redefinição e reinterpretação, no entanto, não é algo que se consuma pela determinação de fatores psicológicos ou sociológicos, mas é construído e manipulado no curso da vida cotidiana na qual a ordem e o controle são ininterruptamente negociados.
 
4. Referências Bibliográficas
 
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FREITAS, Renan Springer de. Bordel, bordéis: Negociando Identidades. Petrópolis: Vozes, 1985, 111p.
 
HONNETH, Axel. Luta por Reconhecimento: a Gramática Moral dos Conflitos Sociais. Tradução de Luiz Repa. São Paulo: Editora 34, 2003., 296p.
 
LEITE, Juçara Luzia. República do Mangue: Controle Policial e Prostituição no Rio de Janeiro (1954-1974). São Caetano do Sul, SP: Yendis, 2005,
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MAFFESOLI, Michel. A sombra de Dioniso. Contribuição a uma sociologia da orgia. Tradução Rogério de Almeida. 2. ed. São Paulo: Zouk, 2005.
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RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890-1930). Rio de Janeiro: Paz e Terra,
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SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Cidadania e Justiça: A política social na ordem brasileira. Rio de Janeiro: Ed. Campus, 1979, 138p, pp.71-82.
 
SCHMITT, Jean-Claude. A história dos marginais. In: J. Le Goff (org.), A nova história. 4a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, pp. 261-290.
 
SIMMEL, Georg. (1892) “Algumas reflexões sobre a prostituição no presente e no futuro”. In: Filosofia do Amor. Tradução de Eduardo Brandão. 2o
ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001, 215p, pp.1-17.
 
Sites da Internet
 
Rede Brasileira de prostitutas: www.redeprostitutas.org.br
Associação dos Moradores do Condomínio e Amigos da Vila Mimosa (AMOCAVIM): www.vilamimosa.com.br
Davida: www.davida.org.br / Jornal Beijo da Rua: www.beijodarua.com.br

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